Há muito tempo, no coração de Lisboa, Maria das Dores fritava bifanas na cozinha quando o marido entrou. Maria, precisamos conversar disse João, com firmeza. Fala respondeu ela, sem levantar os olhos da frigideira.
Quem sabe te sentas e me escutas como deve ser? a voz de João transbordava impaciência. Não tenho tempo. Preciso cuidar das bifanas retrucou a esposa. O que querias dizer?
Eu João hesitou, procurando as palavras. Encontrei outra mulher Vou deixar-te!
Parabéns. Fico feliz por ti respondeu Maria, serena.
Como assim “parabéns”? “Feliz”? Ele fitou-a, perplexo. Mas João não podia imaginar o que Maria planeava naquele momento.
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Sinceramente a amiga calou-se por um instante, como se temesse dizer algo a mais. Ainda não entendo: como tiveste coragem? Isto ultrapassa todos os limites, Maria!
Limites de quê? Do bem ou do mal?
Depende do ponto de vista.
Não importa o ângulo sorriu Maria. O que importa é o resultado. E o meu foi perfeito. Consegui o que queria!
Mesmo assim a vizinha franziu o sobrolho. As consequências negativas hão de chegar
Não sejas agoureira! Maria perdeu a paciência. Quando chegarem, lidaremos com elas. Agora, é tempo de celebrar a minha vitória! Não me estragues o momento.
A vizinha cruzou os braços, ofendida, e virou-se para a janela, fingindo interesse pela paisagem.
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Tudo começou naquela noite, quando João chegou do trabalho e, tentando disfarçar o nervosismo, anunciou:
Precisamos conversar
Maria sentiu um nó no estômago. Sabia que este momento chegaria. E ali estava.
Fala respondeu ela, virando as bifanas no fogão.
Não podes sentar e ouvir como deve ser? a impaciência de João era clara. Ou prefires que eu fale para as tuas costas?
Não tenho tempo, querido respondeu Maria, calma. O Pedrinho vai lembrar-se de mim a qualquer momento: “Mãe, isto; mãe, aquilo.” Não vamos perder tempo. O que querias dizer?
Eu João engasgou-se, procurando as palavras. Encontrei outra mulher
E? Maria nem sequer se virou. O que mais?
Desliga essa frigideira! João explodiu. Estás a ouvir?! Amo outra mulher!
Ouço Maria finalmente olhou para ele. Parabéns.
O quê?! O espanto de João não tinha limites. Esperava lágrimas, não indiferença.
Mais baixo, por favor. Vais assustar as crianças Maria mantinha a compostura, como se nada a surpreendesse.
Já sabias? ele exalou.
Não, mas desconfiava.
Desconfiavas?
Claro. Não desconfiarias se eu chegasse tarde do trabalho, escondesse o telemóvel ou inventasse desculpas para dormir noutro quarto? João, qualquer um percebe quando já não é amado.
Então porque não disseste nada?
Tu é que propuseste casamento Maria sorriu, astuta. E tu é que decidiste acabar com ele.
Porquê desta forma?
Que outra opção havia? Se só quisesses um caso, terias continuado a escondê-lo. Se trouxeste o assunto à baila, já tinhas decidido. Fala à vontade.
João observou-a, sem a reconhecer. Tanta serenidade, dignidade. Esperava lágrimas, não esta frieza.
Resumindo: tenho uma proposta
Interessante Maria sentou-se, fitando-o.
Pensei bem Temos um empréstimo Duvido que consigas pagá-lo, mesmo com a pensão
Já decidiste o divórcio, então? o tom de Maria era cortante, mas João não percebeu.
O que há para discutir? respondeu ele, indiferente. Sabes que nunca me perdoarias.
É verdade ela sorriu. Conheces-me tão bem
Pois bem João ignorou a ironia. Será melhor se fores para o teu T1, e eu fico aqui.
E as crianças?
Óbvio que vão contigo.
Então eu e a minha filha viveremos em 18 metros quadrados, enquanto tu e a tua nova paixão ficam no nosso T3?
Exacto. Não podes pagar o empréstimo. Eu sempre o fiz sozinho explicou, como se fosse óbvio.
Entendi Maria levantou-se. Preciso pensar.
Foi para a varanda.
Pensa à vontade João riu-se, murmurando: “O que há para pensar?”
Enquanto ela estava fora, João encheu o prato com bifanas e puré da panela elétrica, devorando tudo.
Mal acabara quando Maria voltou.
Aceito anunciou. Com uma condição.
Qual? ele sorriu, condescendente.
Ficas no T3 com a tua paixão e o nosso filho. Eu e a minha filha saímos.
O quê?! O rosto de João desfigurou-se. Queres separar os filhos?!
Sim. São responsabilidade de ambos. O filho que tanto desejaste fica contigo. A filha, comigo. Justo, não?
Estás louca?! Eles não são móveis!
Claro. Mas também não sou eu que vou carregar o fardo sozinha enquanto tu te divertes. Chega.
Pagarei pensão! E ajudarei quando puder
Óptimo. Pagas a mim, eu pago a ti. Fizemos os filhos juntos, criamo-los juntos. Se não quiseres o Pedro, ficas com a Ana. Ela é mais velha, será mais fácil.
Estás a vingar-te de mim! gritou João.
Não te invejo tanto respondeu Maria. Só quero justiça. Tu: T3 com o empréstimo e o Pedro. Eu: T1 e a Ana. Pensões recíprocas. Assim, divorciamo-nos em paz. Caso contrário, lutarei. Não cedo um centímetro. Pensa. Noutro lugar.
João foi-se.
Conversou com a amante, a mãe, a irmã. Todos asseguraram que Maria blefava. Nenhuma mãe abandonaria um filho por metros quadrados. Ele podia aceitar. Em três dias, ela voltaria atrás.
A amante, Inês, vibrou. Um T3 no centro! Sonho realizado. O facto de incluir um menino de quatro anos passou-lhe ao lado.
Dias depois, João aceitou.
Óptimo respondeu Maria, insistindo que ele iniciasse o divórcio no dia seguinte.
Porquê eu?
És o homem. E tens mais dinheiro para as custas.
João aceitou.
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Três meses depois, o divórcio foi finalizado. João mudou-se para casa de Inês. Maria preparou-se para sair, suportando críticas de todos.
Como podes?
Que mãe és?!
Não tens vergonha!
Até a filha, Ana, de 12 anos, acusou:
Pensei que nos amasses
Maria suportou tudo em silêncio, esperando.
No tribunal, o juiz estranhou:
Quer deixar o filho com o pai?
Sim respondeu Maria. A responsabilidade é igual. Além disso, o pai está contente. Não é, João?
Ele anuiu.
Ficou decidido.
João suspirou aliviado.
Em vão.
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Maria preparou tudo para a mudança. Reuniu os pertences dela e da filha. E deix


