António não conseguiu dormir naquela noite. A imagem da mulher em frente à padaria não lhe saía da cabeça. Volta e meia, o pensamento regressava a ela não só ao seu rosto, mas sobretudo ao olhar, onde se misturavam o cansaço, a vergonha e uma dignidade ainda viva. Sabia que tinha de agir rápido.
Na manhã seguinte, antes do sol nascer, deixou o telemóvel em silêncio, vestiu o casaco e saiu para o frio do inverno. A cidade estava quase deserta, apenas alguns transeuntes apressados e os trabalhadores da limpeza urbana. António dirigiu-se à padaria onde vira a idosa no dia anterior. A balconista, a mesma mulher de olhar frio, mal levantou os olhos dos gestos mecânicos de preparação do balcão.
Viu a senhora idosa de ontem? perguntou António, direto.
Muitas velhinhas passam por aqui encolheu os ombros ela. Se for aquela das garrafas, aparece quando abrir o ponto de recolha. Por volta das nove, talvez dez.
António agradeceu com um aceno e decidiu esperar.
As horas passavam devagar. O frio cortava-lhe o rosto, mas o pensamento de Margarida aquecia-o mais do que qualquer casaco. Lembrou-se de quando, no tempo em que era apenas um rapaz tímido, ela lhe dava exercícios extra “para o ajudar a crescer” e, sem dizer a ninguém, chamava-o depois das aulas para “uma tarefinha” arrumar livros na biblioteca, limpar o quadro, organizar os lápis. No fim, punha-lhe nas mãos um pão quente ou uma fatia grossa de bolo que ela mesma fizera.
Por volta das nove menos um quarto, ao virar da esquina, surgiu uma silhueta frágil, com passos curtos e hesitantes. Tinha a mesma mala desgastada, o mesmo andar curvado, como se cada passo lhe custasse um esforço enorme. António sentiu um nó na garganta.
Margarida! chamou, esquecendo-se, por um instante, de tudo à volta.
A mulher estremeceu e parou. Fitou-o demoradamente, como se tentasse decifrar quem seria aquele homem bem vestido que pronunciava o seu nome com tanta emoção.
Sou eu o António disse ele, aproximando-se. António Mendes fui seu aluno, há muitos anos.
O rosto dela iluminou-se por um instante, mas depois o olhar tornou-se cauteloso.
António aquele rapaz que começou, mas a voz falhou-lhe.
Sim, aquele que sempre se esquecia do caderno de matemática, mas nunca do pão que me dava respondeu ele, sorrindo. Professora, tem de vir comigo. Não posso deixá-la aqui, neste frio.
Não quero ser um peso murmurou ela. Já vivi assim tanto tempo
Foi tudo para mim retorquiu António, firme. Se não fosse a senhora, não sei onde teria acabado. Protegeu-me da fome, do frio, de muitas coisas. Agora é a minha vez.
Sem lhe dar tempo para recusar, tirou-lhe a mala das mãos e levou-a para o carro. Dentro, o calor do aquecimento fez com que ela soltasse um suspiro leve. Olhava pela janela, em silêncio, mas os olhos enchiam-se de lágrimas.
António levou-a direto para casa, para surpresa de Isabel, que preparava o pequeno-almoço para as crianças.
Isabel, esta é a Dona Margarida, a minha professora. Aquela a quem devo ter terminado a escola. E a partir de hoje, vai ficar connosco declarou ele, num tom que não admitia discussão.
Isabel, apesar de surpreendida, sorriu calorosamente e abraçou-a. O Tomás e o João, curiosos, aproximaram-se para perguntar porque viera e se sabia contar histórias.
Nos dias que se seguiram, Margarida começou a ganhar vida outra vez. Recuperava, pouco a pouco, as forças, comendo regularmente e descansando. Numa tarde, estava à mesa com o Tomás, ajudando-o nos trabalhos de casa.
Tem um neto tão teimoso como eu era na idade dele riu-se António, da sala.
Não respondeu ela, com doçura , é ainda mais curioso. E isso é bom. A curiosidade salva as pessoas.
António sentia que um ciclo se fechava. Passara anos com a sensação de que lhe devia algo, sem saber como retribuir o bem que recebera. Agora, finalmente, podia.
Numa manhã, disse-lhe:
Margarida, falei com a câmara municipal. Querem oferecer-lhe um apartamento social e uma pequena pensão. Mas eu gostaria de mais. Preciso de alguém que seja tutora dos filhos dos meus funcionários. Alguém que os ajude nas aulas, que seja sua mentora. E não consigo imaginar ninguém melhor do que a senhora.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas outra vez.
António sou só uma velha cansada.
Não, é uma professora. E os professores nunca envelhecem de verdade.
Ela aceitou, com modéstia contida, e a notícia espalhou-se rapidamente entre os funcionários. As crianças adoravam ir para a sala de estudos que António montara na empresa. Margarida ensinava-lhes não só matemática ou gramática, mas também lições sobre dignidade, bondade e como, às vezes, um pequeno gesto pode mudar uma vida.
Numa tarde, depois de a última criança ter saído, António ficou a sós com ela.
Sabe disse ele, baixinho , naquele dia, na padaria, pensei: se a deixar ir embora, vou carregar esta culpa a vida toda. Por isso obrigado por me ter permitido fazer algo bom.
Margarida sorriu, um sorriso terno, cheio de gratidão.
António, a verdade é que quando o vi, disse a mim mesma que Deus nunca Se esquece das Suas ovelhas. Mesmo que passem décadas.
À medida que os meses passavam, a sua saúde melhorava. Já não era a mulher curvada no canto da rua, mas sim a professora de olhar firme e gentil. Num verão, a família inteira António, Isabel, os meninos e Margarida foram passar uns dias à terra natal dela, numa aldeia. Lá, Margarida mostrou-lhes a casa dos pais, a igreja onde fora batizada e o banco em frente à escola onde, antigamente, esperava pelos alunos.
Tudo começa com uma mão estendida no momento certo disse ela às crianças. Lembrem-se disso. E, quando chegar a altura, estendam também a sua mão a alguém.
Naquela noite, sob um céu cheio de estrelas, António apertou a mão da mulher.
Sabes, Isabel, acho que só agora percebo o que significa “tudo pela família”. A família não é só aquela em que nascemos. É também aquela que escolhemos salvar.
Isabel sorriu e apoiou a cabeça no ombro dele. Ao longe, Margarida estava sentada no banco, a contar ao Tomás e ao João como, em pequena, aprendera a escrever à luz de uma lamparina. As crianças ouviam, com os olhos muito abertos, como se fosse um conto de fadas.
E assim, num mundo tantas vezes apressado e indiferente, um homem que não esquecera a bondade recebida conseguiu devolver não só o pão, mas também a dignidade, o calor e um lugar no coração dos seus.
Porque, por vezes, o contrato mais importante da vida não se assina no papel, mas na alma.

