**Diário Pessoal**
Leonor fechou a porta do quarto atrás de si com um gesto calmo, mas decidido. Pela primeira vez em muito tempo, sentia uma paz profunda. Não era a quietude de uma casa vazia ou de uma noite tranquila, mas uma serenidade interior, de alguém que finalmente disse o que precisava ser dito.
Sentou-se na beira da cama e puxou o vestido para si. Passou os dedos pelo tecido macio, lembrando o dia em que o vira na vitrine. Era uma terça-feira comum, ela voltava cansada do trabalho, afundada na rotina. Quando o avistou na montra, parou instintivamente. Não era só um vestido. Era sobre a liberdade de se permitir algo. Era sobre merecer.
Anos a fio, proibira-se de gestos assim. Não por não poder, mas porque a voz do Tiago, sempre presente, sussurrava: *”É um luxo desnecessário”*, *”Não precisas disso”*. E, pouco a pouco, Leonor começara a crer que os seus desejos eram fúteis. Que não tinha direito. Que devia ser “prudente”, “modesta”, “económica”.
Mas naquela noite, ao dizer a verdade em voz alta, sentiu-se libertar-se, passo a passo, daquela casca de vergonha e submissão.
Na sala ao lado, Tiago ficou no escuro, com o recibo amassado na mão. As palavras dela ecoavam-lhe na mente, uma a uma. Era impossível ignorá-las. Sentia o peso no peito.
Para ele, todos aqueles anos foram sobre controlo. Chamara-lhe “responsabilidade”, “cuidado”, “equilíbrio financeiro”. Justificara cada proibição, cada recriminação. Dissera a si mesmo que agia pelo bem comum. Mas que bem era esse em que só ele decidia o que era “necessário” e o que era “capricho”?
Quando Leonor mostrou as suas próprias despesas, anotadas com paciência num caderninho, sentiu um vazio no estômago. Não só porque ela tinha razão, mas porque percebeu que não a vira verdadeiramente há anos.
Amava-a? Sim. À sua maneira. Mas respeitara-a? Não.
De manhã, Leonor já estava acordada. Lavara o rosto, penteara o cabelo, preparara o café de que mais gostava. O vestido estava no cabide, pronto. Hoje, iria usá-lo. Não para o Tiago. Nem para os colegas. Para ela.
Tiago apareceu na porta, com ar cansado e desarmado. O cabelo despenteado, os olhos vermelhos de noite mal dormida.
Bom dia disse, voz baixa. Podemos conversar?
Leonor olhou para ele por instantes. Depois, inclinou ligeiramente a cabeça.
Diz.
Tiago respirou fundo.
Errei. Muito. Durante anos, coloquei tudo sobre os teus ombros e exigi submissão em troca. Não soube ver-te. Pedi que fosses minha parceira, mas comportei-me como um patrão. E agora… não sei se consigo reparar isto.
Leonor não respondeu. Segurava a chávena de café entre as mãos.
Fui injusto continuou ele. Tratei o meu dinheiro como “meu” e o teu como “da família”. Comprei o que quis, quando quis, sem pensar se concordarias. Mas a ti, cobrei-te conta de cada tostão.
Ficou em silêncio.
Não sei se ainda queres ficar comigo. Mas se quiseres… gostaria de aprender. De ser um homem que não manda, mas pergunta. Que não impõe, mas escuta.
Leonor pousou a chávena e levantou-se.
Tiago, agradeço por teres dito isto. Mas a mudança não vem de uma conversa. Não te posso prometer nada. O que posso dizer é que, de hoje em diante, escolho por mim. Continuarei atenta, não porque mo peças, mas porque assim o sinto.
Amo-te, Leonor.
E eu também te amei. Mas amor sem respeito… acaba por doer. E eu não quero mais doer.
Pegou no vestido e dirigiu-se à porta. Antes de sair, virou-se:
Hoje, visto este vestido por mim. Não por ti, nem por ninguém. É o primeiro dia em que me escolho a mim mesma.
Saiu, deixando para trás um apartamento em silêncio e um homem que, pela primeira vez, entendera que o verdadeiro amor não é posse, mas liberdade.


